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A EXTENSÃO DO SIGILO MÉDICO

Por PAULO ROGÉRIO SANTOS GIORDANO – Juiz de Direito do TJDFT. Professor de Direito Penal na Escola da Magistratura do DF.

RESUMO

O sigilo médico, como o sigilo profissional em geral, importa em necessária proteção à intimidade do paciente, sendo garantido pela Constituição Federal em apreço ao direito à intimidade, e, consequentemente, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, a par de já ocorrerem exceções ao dever deste sigilo em regras dispostas pelo ordenamento jurídico, não deve ser olvidada a possibilidade de afastamento do direito à intimidade no plano concreto, face a outros direitos fundamentais e diante da colidência entre princípios, ou ainda uma vez que colidam regras que assegurem por um lado o direito ao sigilo médico, e de outro, um direito contraposto igualmente fundamental.

Palavras-Chave: Sigilo Médico. Direito à Intimidade. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Princípios. Regras. Colisão. Superação.

1 INTRODUÇÃO

A proteção ao sigilo médico se faz presente no ordenamento jurídico brasileiro por meio de uma série de regras legais e infralegais, com destaque, no que pertine ao campo penal/processual penal, às disposições contidas no Código Penal, no Código de Processo Penal e Código de Ética Médica, que tratam, respectivamente, da violação do segredo profissional (art. 154 do CP), da proibição da prestação do testemunho pelas pessoas que, em razão da função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo (art. 207 do CPP), e do sigilo profissional médico (principalmente artigos 73 e 85).

Não obstante a utilização de vocábulos diferentes, ‘sigilo’ e segredo’, a finalidade de todas as normas que tratam do tema não é outro senão proteger o direito individual à intimidade do paciente, bem como o interesse da coletividade na mantença da inviolabilidade da relação de confidência entre médico e paciente. Morales Prats (p. 210-211) delineia com proficiência sobre as razões do interesse público na preservação do sigilo profissional, sustentando que o dever de segredo se baseia na necessidade dos indivíduos em socorrerem-se de certos profissionais para solucionar problemas que não podem resolver sozinhos, e para cuja solução há uma demanda de renúncia à intimidade. De outro lado a percepção da lealdade por parte do indivíduo em relação ao profissional que de certo modo lhe protege, preservando o sigilo e consequentemente a intimidade, é fator que reforça a credibilidade e o prestígio de certas profissões, inspirando a confiança necessária para o bom funcionamento destas mesmas profissões.

A acentuação do caráter do princípio da dignidade da pessoa humana como norma fundamental do Estado deixa entrever sua íntima correlação com os direitos e garantias fundamentais, entre os quais o direito à intimidade, pois estes constituem uma concretização do valor fundamental da pessoa humana.

Entretanto, não raras vezes a proteção do direito ao sigilo médico esbarra na proteção a outros direitos fundamentais, que no caso concreto se revelam contrapostos, originando uma verdadeira colisão entre princípios, ou entre regras.

A análise aprofundada da gênese e constituição do sigilo médico, bem o traçamento de considerações a respeito de seu fundamento, vale dizer das razões que fundamentam sua proteção no ordenamento jurídico brasileiro, e a utilização de métodos propostos para a resolução da colisão entre princípios, ou da colisão que pode ocorrer entre regras, auxilia no deslinde da questão da prevalência ou superação do sigilo médico nos casos particularizados, aclarando suas repercussões práticas no campo penal/processual penal, em especial no campo da validade das provas.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE SIGILO E SEGREDO MÉDICO

Nos primórdios da Medicina como ciência, Hipócrates, por meio de uma série de obras, entre as quais “Juramento”, desenvolveu o chamado Pensamento Hipocrático, um conjunto de idéias representativas do conteúdo ético que permeia a Medicina tal como preconizada pelo intelectual grego.

Entre os dogmas que procurou estabelecer está o respeito ao segredo médico, depois alcançado pelo direito positivo, inicialmente mediante a imposição de normas de conteúdo administrativo disciplinar. Paulatinamente houve um alargamento do campo de incidência das normas atinentes à proteção do sigilo profissional em geral, inclusive no campo penal e processual penal, de forma a culminar numa efetiva proteção constitucional ao direito individual constitucional que o informa, ao menos nos Estados Democráticos de Direito.

Conquanto as normas protetivas alternem-se na utilização dos termos ‘sigilo’ e ‘segredo’, cumpre distingui-los para uma perfeita delimitação do tema: sigilo é o instrumento pelo qual se preserva o segredo, que é o fato a ser preservado.

Segundo López Gomez (1967, p. 45), mais significativo, então, a definição de segredo médico, sendo importante ilustrar que algumas tentativas nesse sentido pecam por circunscrever o âmbito do segredo estritamente às confidências feitas pelo paciente ao médico, esquecendo-se dos fatos que o médico pode divisar pelo próprio exame do paciente e outras exposições devem sua incompletude ao fato da exclusiva preocupação com o dever moral que impele ao sigilo. Mas não podemos descuidar de propor uma conceituação, mais ampla e precisa: segredo médico é uma espécie de segredo profissional, portanto de caráter oculto, necessariamente guardado pelo confidente necessário (médico) em favor do confitente (paciente), cuja exposição se dá em razão da essencialidade de fazê-lo com vistas a obtenção de um serviço médico, acarretando o ingresso na esfera de intimidade do paciente.

Sigilo e intimidade, tal qual sigilo e segredo, também não se confundem: intimidade é uma expressão dos direitos de personalidade do indivíduo, e para sua proteção algumas vezes é requerido o sigilo, dentre os quais o sigilo médico, que passa então a funcionar como instrumento protetivo do direito à intimidade. Nesse sentido, para Barros (1996, p. 225-249):

Não pode prevalecer a falsa impressão de que a Constituição Federal de 1988 não tutelou o sigilo profissional por não tê-lo elevado ao patamar de garantia ou princípio constitucional. É inegável sua inserção numa série de direitos especialmente protegidos pela Magna Carta, destacando-se sobretudo a convicção de que o sigilo faz parte do elenco de atributos da intimidade, que por sua vez é formada por elementos personalíssimos rigorosamente marcados pelo sinal de inviolabilidade (Art. 5º, X, CF). (BARROS, Marco Antonio. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro, 1996.)

3 O DIREITO AO SIGILO MÉDICO COMO EMANAÇÃO DO DIREITO À INTIMIDADE

A CF (art. 5º, X) preceitua que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Silva (2007, p.45) destaca que a esfera de inviolabilidade descrita abarca “todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade”, nominando-as simplesmente de “direito a privacidade”.

Embora o citado autor não se exima de diferenciar, diante da certeza de que a norma não deve conter palavras inúteis, intimidade de vida privada, inclusive aceitando relevância jurídica na distinção, outros como Cifuentes (1995) combatem a necessidade da distinção.

No mesmo espírito da posição do jurista brasileiro, convém citar Heinrich Hubman e Heinrich Henkel, ambos juristas alemães, que procuraram distinguir vida privada, intimidade e segredo em três esferas concêntricas, sendo a mais ampla a da vida privada, abraçando um grande número de relações sociais travadas pelo indivíduo e de caráter menos profundo, e a menos ampla aquela do segredo, que contém informações que o indivíduo só pretende compartilhar excepcionalmente, e com número restrito de pessoas.

Entre as duas esferas, situar-se-ia a esfera da intimidade, contendo informações mais porosas que aquelas que consubstanciam um segredo, e, por outro lado, mais restritas que as manifestações da vida privada. A intimidade é, em tese, mais compartilhada que o segredo, mas tende a se expandir menos que as manifestações da vida privada, algumas delas até bastante superficiais, geradas principalmente pelos hábitos e costumes dos indivíduos.

Referida teoria, a par de sua importância gerada pelo didatismo que contém e ainda pelo fato de ter suscitado intensos e produtivos debates acerca da separação entre o público e o privado, resta superada, ante principalmente a dificuldade de uma nítida cisão entre cada uma das esferas. Nesse sentido discorre Rodrigues (2008) apud Ferreira (1994, p. 97-99) “é lógico que essas esferas são flexíveis, sendo impossível fazer-se uma rígida separação, e sua amplitude dependerá não somente da categoria social, ou do status do indivíduo, mas também de sua proteção e de seu modo de ser”.

Mas, não obstante a imprecisão de se delimitar intimidade de vida privada e segredo sem que sejam consideradas as peculiaridades da situação que envolve o indivíduo, o fato é que – não obstante opiniões contrárias, como antes enfatizado – convém a distinção porque a Constituição Federal as distingue – assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação –, eis que embora sejam todos estes direitos – à intimidade, vida privada, direito a honra e direito a imagem – direitos individuais calcados no princípio da dignidade da pessoa humana, ao menos algumas dissimilitudes entre elas sobressaem.

Luño (1986, p.327) acentua a dificuldade de diferenciação entre vida privada e intimidade mediante o ressalto da carga emotiva que permeia o significado de ambos, mas Urabayén (1977, p.11) faz a distinção, aceitando que a vida privada é mais ampla que a intimidade:

Consideramos que nuestro estudio tiene um objetivo más amplio y, respecto al nível acabado de citar, menos profundo. Al ir examinando las jurisprudencias francesa e anglosajona, llegamos a comprender que debíamos distinguir dos significados em el concepto de intimidad, uno estricto ya aludido, y outro más amplio equivalente a vida privada, a “vié privée”, e igualmente equivalente a la palabra inglesa “privacy” incluída em la expressión “right to privacy”. (URABAYÉN, Miguel. Vida privada e información: un conflito permanente. Pamplona: Ediciones de la Universidad de Navarra, 1977, p.11).

Moraes (2007, p. 159-160) reforça a maior amplitude da vida privada discorrendo que “envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.”. Já a intimidade evocaria relações subjetivas e “de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade”.

Requejo Naveros (2006, p.24-28), em obra sobre o segredo médico, singulariza o conceito de intimidade, não sem antes frisar que a Constituição espanhola de 1978, no art. 18.1 erigiu à categoria de direitos fundamentais o direito a honra, a intimidade pessoal e familiar e a própria imagem, ampliando a esfera de atuação destes direitos, posto que nos termos do art. 53 da mesma Constituição passaram a vincular todos os poderes públicos, deixando de amparar apenas direitos privados, tal como ocorria antes, em que tais direitos eram assegurados apenas pelo Código Civil espanhol. Aparta os conceitos de intimidade e honra, ressaltando que

(…) en la violación de la intimidad no se formula juicio adverso o degradante alguno para la víctima. Para la violación de la intimidad basta o que el sujeto activo tome conocimiento indebidamente de aspectos reservados de la vida del afectado (o intente tomarlo interveniendo sus comunicaciones telefônicas o postales, aun cuando no logre obtener noticias íntimas), o que el sujeto activo vulnere su prohibición de poner em conocimiento de terceros aquellas confidencias que haya accedido lícitamente, sin necesidad de que tales informaciones reservadas sean ofensivas para el mesmo.

Por su parte, el atentado contra el honor no requiere que la imputación realizada corresponda a uma información reservada obtenida mediante injerencia indebida o cuya revelación no haya sido autorizada por la víctima. En este sentido, los datos que se empleen para lesionar el honor pueden constituir uma información pública. No es necesario por tanto que la información empleada para causar la ofensa ostente el carácter de íntima o privada.

(REQUEJO NAVEROS, Maria Teresa. El delito de revelación de secreto médico y la protección penal de la información genética. Madrid: Colex, 2006, p. 24-28).

A precisa distinção é de todo aproveitável para entender parte do sistema de inviolabilidades dos direitos individuais personalíssimos previstos na Constituição brasileira, dada a similitude com a proteção conferida pela Constituição espanhola aos mesmos direitos. As conceituações engendradas por Naveros (2006) proporcionam entrever, entre outras coisas, que assim como o sistema jurídico brasileiro o sistema jurídico espanhol enquadra o direito ao sigilo como instrumento para garantir o direito à intimidade – anteriormente já se salientou a convergência entre sigilo médico e intimidade.

4 O DIREITO A INTIMIDADE COMO COROLÁRIO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Conquanto na Grécia Antiga tenha começado a se esboçar a importância de um direito natural anterior ao direito positivado, e também superior, foi no Direito Canônico, com Tomás de Aquino, durante o século XIII, a primeira notável referência a “dignidade humana”, sobrelevando a racionalidade do ser humano para assim distingui-lo dos outros seres.

Destarte, em consideração a ideia de que todos os seres humanos detêm o atributo da razão, desenvolve-se o conceito de dignidade humana, cumprindo sobrelevar neste ponto o pensamento de Kant (2015), para quem o homem é sujeito de conhecimento e deve ser considerado um fim em si mesmo, sendo a autonomia de que goza a fonte de sua racionalidade. A liberdade na execução da razão prática sendo suficiente para que um ser possa envolver-se de dignidade, e sendo a autonomia característica indissociável aos seres humanos, faz da condição humana sustentação fática suficiente para concluir que todos os seres humanos são sempre dotados de dignidade.

Conquanto tenha havido outras contribuições importantes de filósofos e juristas do Renascimento e do Iluminismo para fazer “tomar vulto essa ideia de um direito natural garantidor dos direitos essenciais do homem” (DOURADO, Maria de Fátima, p. 31), foi no século XX, com as revelações das barbáries cometidas durante a II Guerra Mundial, conflito que se destacou por intensas demonstrações de desprezo ao ser humano, que acabou se desencadeando a necessidade de destacar nos ordenamentos jurídicos a proteção do homem como um fim em si mesmo.

A dignidade da pessoa humana passou a ser parte integrante das Constituições dos estados europeus no pós-guerra, justamente para evidenciar a finalidade de proteção do homem contra atos degradantes, bem como para garantir-lhe condições de uma vida significativa, inclusive com participação ativa nos acontecimentos que moldem seu destino.

Na esteira das Constituições europeias, a Constituição brasileira de 1988, assim como a acolheram mundo afora as Constituições dos Estados Democráticos de Direito, erigiu a dignidade humana à categoria de princípio fundamental da República, “razão de ser do Direito” segundo Nery Júnior (2016), para quem o

Respeito e proteção da dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do Estado Constitucional (Verfassungsstaat) constitui a premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. Dignidade humana constitui a norma fundamental do Estado, porém é mais do que isso: ela fundamenta também a sociedade constituída e eventualmente a ser constituída. Ela gera uma força protetiva pluridimensional, de acordo com a situação de perigo que ameaça os bens jurídicos de estatura constitucional. (NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista Tribunais, 2016).

Pontua Dourado (2008, p. 63) que “a dignidade da pessoa humana foi introduzida no texto constitucional pátrio como forma de elevar à categoria de princípio fundamental um compromisso internacional assumido pelo Brasil quando assinou a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.”

Para Sarlet (2002):

A dignidade da pessoa humana corresponde à qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

(SARLET, I. W. A eficácias dos direitos naturais. 2. ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livrarias dos Advogados, 2002. p. 60).

O mesmo autor destaca que

(…) na sua qualidade de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais (embora com os direitos não se confunda, em toda sua extensão), mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual, para muitos, se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa ((SARLET, I. W. A eficácias dos direitos naturais. 2. ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livrarias dos Advogados, 2002. p. 60).

Jorge Miranda (2008) diz que se trata de um “princípio axiológico fundamental” que ao mesmo tempo opera como “limite transcendente do Poder Constituinte”.

Vale dizer, o princípio da dignidade da pessoa humana atua como fonte de interpretação das normas constitucionais, que dele não podem se afastar, e, concomitantemente, permite o nascimento de novos direitos que embora não estejam expressos na Constituição não são incompatíveis com a ordem constitucional. Estas características decorrem essencialmente da alta carga valorativa que contém, e que justificam sua proeminência, muito bem explicada por Coelho (1997).

Porque se trata de um método de ponderação de bens no caso concreto, é intuitivo que, sob esse prisma, não exista uma hierarquia fixa, abstrata e apriorística, entre os diversos valores constitucionais, ressalvado, é claro, o valor da dignidade da pessoa humana, porque a pessoa é o valor-fonte de todos os valores ou o valor fundante da experiência ética. (COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p.84).

Por outro lado, impende dizer, ainda que se acentue a condição de fonte para a aceitação de novos direitos não explicitados na Constituição, para reforço e concretização do valor fundamental da dignidade humana foi preciso que o constituinte originário explicitasse uma série de normas constitucionais, introduzindo na Constituição de Federal de 1988 regras e princípios que consubstanciam direitos e garantias individuais, dentre os quais os direitos de personalidade – direito à vida privada, intimidade, honra e imagem.

Estes direitos e garantias fundamentais, segundo Edilsom Pereira de Farias (2008) constituem uma das representações da positivação dos direitos humanos, mais precisamente a constitucionalização dos direitos humanos. A despeito de desfiar outras formulas para diferentes conceituações de direitos humanos, diz concordar com aquela proposta por Luño (1986), que de fato parece menos hermética e abrangente o suficiente, sem, entretanto, incorrer em demasiado viés genérico:

(…) conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em âmbito nacional e internacional. (Luño, Antonio-Henrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constituición. Madrid: Tecnos, 1986, p. 327).

A questão que se coloca, diretamente vinculada à aceitação de que a dignidade humana é norma fundamental do Estado, e de que os direitos e garantias fundamentais constituem uma concretização do valor fundamental da pessoa humana, é acerca da colisão entre princípios ou regras constitucionais versando sobre direitos fundamentais expressos na Constituição/88, quando tais normas emanem diretamente da proteção que se faz da dignidade humana.

Justamente em razão desta proeminência do princípio da dignidade da pessoa humana dentro da ordem jurídica – aqui convém novamente mencionar Sarlet (2002) que atribui a qualidade e princípio à dignidade da pessoa humana, embora diga também que muitas vezes também atue como fundamento de uma regra, como no caso da proibição da tortura, e para quem a discussão “em torno da qualificação da dignidade da pessoa como princípio ou direito fundamental não deve ser superestimada, já que não se trata de conceitos necessariamente antitéticos e reciprocamente excludentes” (não só mas também pelo fato de que as próprias normas de direitos fundamentais igualmente assumem a dúplice condição de princípios e regras) –, alguns autores, como Rodriguez (2005), sustentam que alguns dos direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF, entre os quais o da intimidade, exigem uma preservação que “vai muito além da mera proteção de um direito individual, que sucumbiria frente à noção, mesmo que vaga de “interesse público”, pois alguns destes direitos, consubstanciados em princípios ou regras “são também fruto da dignidade da pessoa humana”.

Segundo esse último raciocínio, e em sendo o sigilo médico uma garantia do direito à intimidade, estaria demonstrado que, “no conflito entre preservação do segredo e o interesse em que surjam dados para a promoção da ação penal, deve prevalecer o primeiro, porque supremo”. Mas a questão não se apresenta tão singela assim, como se verá adiante.

5 REGRAS, PRINCÍPIOS E POSTULADOS

Alexy (1999) destaca que os direitos fundamentais são “direitos do homem”, com validez universal, tendo como importante elemento de concretização a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948. Remete a uma “ciência dos direitos fundamentais”, cujo objetivo seria a revelação de estruturas dogmáticas, com realce dos princípios e valores que orientariam o direito positivado e a jurisprudência.

O catálogo de direitos fundamentais, afirma, tem força vinculativa, em relação a todos, inclusive os poderes do Estado, não só em razão de “ordens de vinculação”, como aquela expressa no art. 5º, § 1º da CF (“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”), como ainda em razão de sua própria natureza de “direitos do homem transformados em direito positivo”.

O jurista alemão distingue regras e princípios pelo critério qualitativo, classificando-as como subespécies de normas, dispensando e superando distinções anteriores, realizadas segundo critérios quantitativos, entre normas e princípios e entre princípios e regras.

Define princípio como uma espécie de norma que compreende mandados que são otimizados, ou seja, que estabelecem a realização de alguma coisa na máxima medida possível dentro das condições fáticas e jurídicas possíveis, estabelecendo um dever “prima facie”, que após um juízo de ponderação com outros deveres “prima facie” faz surgir um dever definitivo (“mandado de otimização”). A regra, por sua vez, defende, constitui uma espécie de norma que expressa direitos e deveres definitivos, de forma que sua validade implica na realização exata de seu conteúdo.

Propõe como solução para a questão da colisão entre direitos fundamentais, o caminho da teoria dos princípios. Esta teoria constitui um meio-termo “entre vinculação e flexibilidade”, afastando a possibilidade de se reputarem direitos fundamentais como meras normas programáticas – risco que se correria diante da adoção da teoria das regras, em que uma das normas colidentes teria que ser tida como inválida, ou ambas válidas porém dependendo da inserção de uma regra de exceção à aplicação de uma delas, decorrendo neste último caso uma situação impraticável na medida em que à cada direito fundamental corresponderia um sem número de exceções –, e, por outro lado, diante do juízo de ponderação a ser realizado entre as normas, estabelecendo a aplicação de cada direito fundamental sempre dentro do possível (conforme as possibilidades fáticas e jurídicas), dentro do que razoavelmente o titular do direito pode exigir da sociedade.

Em suma, a solução do problema da colisão entre direitos fundamentais pressupõe, na concepção de Alexy (1999), a adoção do método de ponderação, atribuindo-se um peso maior ou menor a um direito fundamental em face de outro, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, mantendo íntegro o sistema, porém.

Em sua construção teórica o mesmo filósofo alemão também se preocupa em diferenciar princípios e valores, situando os primeiros no plano deontológico, do que é devido, e os segundos no plano axiológico, do que é melhor. Mas não defende a existência de um critério apriorístico que possa servir à definição de princípios e valores superiores a outros, relegando a questão essencialmente à análise do caso concreto. Ao invés, limita-se a desenvolver o que chama de ‘ordem flexível’ (feito a primeira vista), uma ordem valorativa precária apenas – extraída de decisões concretas dependentes do juízo de ponderação e ainda conforme uma teia de preferências advindas de argumentações mais sólidas estabelecidas acerca de determinados princípios.

6 O DEVER DE PROPORCIONALIDADE COMO INSTRUMENTO PARA A SOLUÇÃO DE COLISÕES ENTRE OS PRINCÍPIOS

No plano do direito constitucional o dever de proporcionalidade passou a ser destaque na proteção substancial do indivíduo (“eficácia normativa positiva”), isto é consolidou-se como instrumento importante na definição de direitos individuais positivos a partir de normas constitucionais tidas até então como programáticas, o que somente foi possível com a superação da necessidade de consolidação do Estado Democrático de Direito, e ainda depois de um primeiro momento em que forçosa concentração de esforços para limitar a ação Estatal em relação aos direitos individuais (“eficácia normativa negativa”).

Guerra Filho (2007), exaltando a função da proporcionalidade, a nomina de “princípio dos princípios”, esclarecendo, por outro prisma, que não se trata de princípio absoluto, “sendo como é um princípio que expressa a relatividade dos princípios e direitos fundamentais, com caráter reflexivo, ou seja, que se aplica a si mesmo, para que sua aplicação seja igualmente proporcional”.

Não obstante a definição servir como instrumento de alerta sobre a importância da proporcionalidade na questão do sopesamento dos direitos fundamentais contrapostos, parece mais acertado o enquadramento do dever de proporcionalidade como categoria jurídica diversa do princípio. Não se confundem entre outras razões porque a aplicação da proporcionalidade “independe das possibilidades fáticas e normativas, já que seu conteúdo normativo é neutro relativamente ao contexto fático” (ÁVILA, 1999, p. 169) que se apresenta.

Na verdade, melhor relegá-lo ao plano dos chamados postulados, definidos no sentido Kantiano, como

(…) uma condição de possibilidade do conhecimento de determinado objeto, de tal sorte que ele não pode ser apreendido sem que essa condição seja preenchida no próprio processo de conhecimento. (ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revisa de Direito Administrativo. n. 215, 1999, p.169).

Mais criteriosamente ainda como postulado normativo aplicativo, instituído pelo próprio Direito, necessário para a correta aplicação de outras normas com a devida realização integral dos bens juridicamente resguardados.

A ponderação (proporcionalidade em sentido estrito) praticada quando da colisão entre princípios ou entre princípios e regras, obrigatoriamente tem que preservar na máxima medida possível o direito contraposto que for sacrificado. Esta ponderação implica no fato de que a medida – a superação da norma sacrificada – deve ser apta a obter a finalidade desejada (fim subjacente da norma preferida), bem como revelar-se como o meio menos danoso para a obtenção da finalidade. (BONAVIDES, Paulo, 2004).

7 CRÍTICAS À TEORIA DE ROBERT ALEXY

Não obstante reconhecer a importância da teoria formulada por Alexy, bem como a contribuição do trabalho Dworkin para o tema, Ávila (1999) sustenta que a distinção entre princípios e regras não pode ser baseado no método “tudo ou nada” de aplicação das regras, dado que estas para serem implementadas, preceitua, também demandam um “um processo prévio – e por vezes longo e complexo como o dos princípios – de interpretação que demonstre quais as conseqüências que serão implementadas.”, bem como uma conjunta interpretação dos princípios que informam esta regra.

Por outro lado, defende que não se sustenta como forma de diferenciação a afirmação de que os princípios não ostentam conseqüências normativas, ou que, ao menos, no mínimo seriam normas muito espaçadas, com “hipótese de incidência muito aberta”. Isto porque as consequências normativas dos princípios são manifestas, consubstanciadas nos fins que almejam, e “a qualificação de aberta a uma hipótese de incidência é também uma questão de interpretação”.

Demonstra, mais precisamente quanto a este último ponto, que a interpretação sob diferentes prismas do texto que contém a norma leva à consideração da existência de um princípio ou uma regra, como no caso da igualdade, que sob um ângulo (da finalidade) é princípio, e de outro (quando se enxerga a igualdade como proibição de discriminação baseada no sexo, raça, etc.), uma regra – explanação que derruba o critério da maior ou menor abertura da hipótese de incidência da norma como critério divisor entre princípios e regras.

A chamada “dimensão de peso”, aduz, tampouco ajuda a denotar as dessemelhanças entre as espécies normativas, eis que, verdadeiramente, o peso não é atributo empírico de um princípio, mas das razões e dos fins que sustentam o princípio, segundo um juízo de valor realizado pelo intérprete/aplicador.

Prescreve finalmente que nem sempre o conteúdo dos princípios vai ser realizado apenas na “medida do possível”, pois a realização algumas vezes se dá na “máxima medida”, tal qual ocorre ordinariamente em relação às regras. Isto acontece quando diante da colisão de princípios a realização de um fim instituído pelo princípio prevalente exclui totalmente a possibilidade de realização do fim almejado pelo princípio preterido no caso concreto.

Ressaltando a pouca importância da denominação utilizada pelo legislador para definir determinada norma como princípio ou regra, e batendo-se no sentido de que há normas que consubstanciam direitos e que na verdade contém princípios, outras que se identificam como princípios e que na verdade em essência são regras, bem como normas que encerram concomitantemente princípio e regra, propõe novos paradigmas para a sustentação das diferenças entre princípios e regras. Princípio como espécie de norma que estabelece diretamente um fim, bem como o comportamento devido para a concretização deste fim, este último de forma menos exata (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), dependendo mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos de interpretação para a determinação da conduta devida, e regra como espécie normativa a estabelecer indiretamente um fim, bem como o exato comportamento devido para o alcance desse fim, dependendo com menos intensidade da sua relação com outras normas e de atos de interpretação para a determinação da conduta devida.

Em sua “Teoria dos Princípios“, Ávila (1999) aprofunda o substrato teórico que fundamenta as críticas à distinção realizada na obra clássica de Alexy (1999), emprestando significativa contribuição para a resolução de questões práticas que não poderiam ser solucionadas facilmente com a adoção dos modos estabelecidos para separarem-se regras de princípios.

Conformadora de sentido prático sua argumentação sobre como o conflito entre duas regras não se resolve necessariamente no plano abstrato – em que ou se declara a invalidade de uma destas normas, ou se considera que ambas são compatíveis em face de uma das regras constituir apenas exceção à outra regra –, mas também no plano concreto, diante de um juízo de ponderação de interesses, de modo similar ao que ocorre em relação aos princípios.

Entre os exemplos que tece, um é bastante didático: o conflito entre a regra que proíbe a concessão de liminar contra a Fazenda Pública que esgote o objeto litigioso (art. 1º da Lei nº 9.494/97) e a regra que obriga o Juiz, inclusive por liminar se o caso, a determinar que o Estado forneça remédios para quem deles necessitar para viver (art. 1º da Lei Estadual do Rio Grande do Sul nº 9.908/93). Didático porque desnuda a desnecessidade, e impropriedade mesmo, de se declarar inválida uma das duas regras, ou mesmo abrir uma exceção a uma delas, resolvendo-se a questão no plano concreto, depois de um juízo de ponderação, fazendo prevalecer ou a finalidade de preservação da vida do indivíduo, ou a finalidade de distribuição equitativa de recursos na área de saúde conforme já previamente estipulada pelo Poder Público.

Esta ponderação entre razões e contrarrazões é caminho necessário não só para a resolução de conflitos entre princípios, como também para delimitar-se o âmbito de aplicação da regra geral em face das regras de exceção, e até para a solução de um conflito entre regras quando não se vislumbre o caso da existência de regra(s) de exceção.

Trilhando-se o pensamento de Ávila é permitido concluir que as regras em circunstâncias normais devem ser obedecidas, entre outras razões porque a opção que o legislador faz pelas regras tem o condão de ajudar a reduzir as arbitrariedades potenciais em caso de julgamentos com “aplicação direta de valores morais” (princípios), e ainda porque a ausência de soluções concretas dadas pela lei (ausência de regras) demandaria, indubitavelmente, uma certa descoordenação entre os aplicadores do direito, inclusive com custos excessivos decorrentes da necessidade de “solucionar cada caso individualmente, com uma autoridade específica e uma fundamentação particular”.

Considerando que as regras em situações normais devem ser obedecidas, mas também considerando que carecem de ponderação e excepcionalmente podem ser superadas (repita-se, não se trata aqui de invalidade) em alguns casos (principalmente, mas não exclusivamente em caso de conflito com outra regra), o questionamento que faz é: em abono a quais circunstâncias pode ocorrer esta superação?

E a resposta passa necessariamente pela eficácia mais decisiva das regras em relação aos princípios, pois aquelas já constituem concretizações de finalidades dos princípios, e, sendo assim, a superação há que se dar segundo parâmetros mais rígidos do que ocorre na ponderação dos princípios. Far-se-á, necessariamente, uma indicação rigorosamente fundamentada da dissensão entre a solução concreta ao caso resultante da aplicação da hipótese de incidência da regra e a finalidade latente da norma. Mais ainda: será imperioso que a superação da norma naquele caso concreto não fira expressivamente a segurança jurídica, da qual a regra é, justamente, um baluarte – a regra, frise-se novamente, consubstancia uma prévia ponderação feita pelo legislador acerca do modo como deva ser realizado os fins contidos nos princípios, vale dizer, um fator de segurança jurídica que não pode ser simplesmente substituído pelo intérprete/aplicador do direito.

8 NORMAS ESSENCIAIS A RESPEITO DO SIGILO MÉDICO PREVISTAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O sigilo médico, vertente do sigilo profissional, é resguardado largamente nas constituições modernas do Estados Democráticos de Direito, como emanação do direito à intimidade, e ainda sua normatização é complementada nas legislações infraconstitucionais destes países.

No Brasil, como antes destacado, encontra guarida na CF (art. 5º, X), sendo complementado o resguardo ao sigilo por normas previstas, entre outros, no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90), Código Penal, Código de Processo Penal e no Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009), sendo esta última norma infralegal, editada de acordo com a Lei nº 3.268/57 e suas modificações – a Lei nº 3.266/57 instituiu como uma das atribuições do Conselho Federal de Medicina a votação e alteração do Código de Deontologia Médica (art. 5º, ‘d’).

O Código Penal pune a violação de segredo profissional, e consequentemente a violação do segredo médico, com detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, para tutelar o direito individual do paciente. Excepciona e possibilita a revelação do segredo profissional, médico inclusive, quando ocorre a chamada justa causa, elemento normativo do tipo, que, portanto, reclama um juízo de valor acerca da situação de fato por parte do destinatário da lei penal, sendo que este juízo de valor pode estar ou não ligado ao mundo do Direito (elemento normativo jurídico ou elemento normativo extrajurídico).

Alguns penalistas, como Cunha (2016) e Capez (2006), inclinam-se no sentido de que o conceito de justa causa é bastante abrangente, compreendendo qualquer situação em que o interesse público se sobreponha ao interesse privado. Outros, como Fragoso (1989) e Franco (1997) são mais restritivos, circunscrevendo a possibilidade da existência de justa causa para a revelação do segredo médico às hipóteses explicitadas pela lei – Heleno Cláudio Fragoso embora ostente posição restritiva, reconhece a controvérsia em torno da matéria, enfatizando, com base em Carrara, § 1653, “que há situações morais que, embora não tenham sido previstas na letra da lei, forçam a equidade do juiz a declinar a austeridade de uma proibição, apesar das fórmulas generalíssimas com que tenham sido estabelecidas.” (FRAGOSO, Heleno, 1989, p. 293).

Impende, de qualquer modo, deduzir-se que a doutrina penal, seja mais ou menos restritiva, acolhe a conclusão de que o sigilo médico, ainda que tenha esteio no direito à intimidade e, consequentemente, no princípio da dignidade humana, cede passo quando confrontado com outros direitos igualmente escorados em princípios constitucionais. Este confronto ocorre, indubitavelmente, quando se aperfeiçoam as situações fáticas que se amoldam às regras de exceções ao dever de sigilo médico previstas na lei – frise-se que embora importem numa restrição ao direito à intimidade, não se vislumbra qualquer contestação doutrinária relevante no sentido da invalidade destas regras.

Uma destas exceções encontra assento no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que preceitua em seu art. 70-B, e parágrafo único, “que as entidades, públicas e privadas, que atuem nas áreas a que se refere o art. nº 71, dentre outras, devem contar, em seus quadros, com pessoas capacitadas a reconhecer e comunicar ao Conselho Tutelar suspeitas ou casos de maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes”, incluindo entre as pessoas obrigadas à comunicar os maus-tratos, aquelas que por razão de cargo, função, ofício, ministério, profissão ou ocupação, são encarregadas do cuidado, assistência ou guarda de crianças e adolescentes, punindo-se, na forma do Estatuto, o injustificado retardamento ou omissão, culposos ou dolosos.

Portanto, dentre as pessoas enumeradas, à evidência se incluem os médicos, que inclusive são sujeitos a punições administrativas em caso de descumprimento da regra, nos exatos termos do art. nº 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis:

Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Sobre o direito fundamental de proteção que têm crianças e adolescentes, mais precisamente acerca da especial proteção conferida pela Constituição de 1988, e que fundamenta a mencionada regra do Estatuto da Criança e do Adolescente, Silva (2007) escreve, com acerto, que a

Constituição é minuciosa e redundante na previsão de direitos e situações subjetivos de vantagens das crianças e adolescentes, especificando em relação a eles direitos já consignados para todos em geral, como os direitos previdenciários e trabalhistas, mas estatui importantes normas tutelares dos menores. (SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo, 29. São Paulo: Malheiros Editora, 2007. p. 851).

Esta minudência a que faz referência o constitucionalista redundou num tratamento mais rigoroso em relação aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assegurando-se com absoluta prioridade, inclusive, que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Outra regra que excetua o direito/dever do sigilo médico encontra-se encartada no texto do art. 269 do Código Penal, que caracteriza como crime o fato de médico deixar de denunciar à autoridade pública doença de notificação compulsória. O bem jurídico tutelado pela norma é a saúde pública de todos, e o que fundamenta a exceção ao direito/dever do sigilo médico é o fato de que a omissão do médico quanto à notificação de certas doenças pode colocar em perigo a vida das pessoas.

O que se conclui, em síntese, é que as nominadas regras de exceção à intimidade, como outras, na verdade constituem uma concretização de finalidades de outros princípios constitucionais, respectivamente do direito à proteção que tem as crianças e adolescentes, e do direito à vida.

A questão que se coloca, por outro lado, é se, ao alargarmos o campo de incidência da justa causa para além das exceções previstas na lei, haverá violação ao direito à intimidade e, consequentemente, ao princípio da dignidade humana. E a resposta, iniludivelmente, deverá ser dada conforme o direito contraposto que se busca proteger quando se expande o conceito de justa causa.

O Supremo Tribunal Federal quando chamado a decidir conflitos que envolvam o direito à saúde, costuma sublinhar sua conexão com o direito à vida:

(…) o direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento constitucional” (excerto extraído ementa do AGRG, No Recurso Extraordinário nº 271. 286-8 Rio Grande do Sul, relator Min. Celso de Mello).

O princípio constitucional à vida, nas palavras de Uadi (2012) “é o mais importante de todos”, o “carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988. Está intimamente interligado a outros direitos, e seria de nenhuma valia “a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos”, sendo que seu conteúdo está intimamente interligado a outros direitos fundamentais, inclusive o da dignidade humana. É de se dizer, em síntese, que “sem a proteção constitucional do direito à vida, os fundamentos da República Federativa do Brasil não se realizam. Daí a ratio essendi de sua constitucionalização, seu enquadramento, pois. (MIRANDA, 2008, p. 200).”

Portanto, diante da fundamentalidade do direito à vida, é imperioso depreender que a proteção ao direito de intimidade, amparado pela norma que criminaliza a conduta do médico que viola o segredo profissional, necessariamente cede passo ao configurar-se colisão entre os dois direitos em determinado caso concreto. Donde, conclusão lógica, fica patente que as exceções a regra da inviolabilidade do segredo médico não se limitam àqueles casos taxativamente enumerados na lei.

Em situações como a de um médico psiquiatra que tem a posse de apontamentos que fez a partir de consultas com paciente que revela vontade incontrolável de matar determinada pessoa, não se pode negar estarem em colisão dois direitos fundamentais (direito à intimidade x direito à vida), que exige a realização de um juízo de ponderação, nesse caso atribuindo-se um peso maior ao direito fundamental à vida – repita-se, sem o qual tem pouca importância a garantia de outros direitos fundamentais –, independentemente de não haver expressa disposição no sentido da situação constituir uma exceção à regra da preservação da intimidade prevista no art. 154 do CP

O médico, na situação hipotética apontada, se revelasse aos órgãos de persecução a confissão que ouviu do paciente, desde que tenha conferido seriedade à manifestação do paciente e inferido que a conduta criminosa confessada era iminente, não praticaria o crime de violação do segredo profissional, porquanto a ‘justa causa’ se extrai do juízo de ponderação realizado entre os princípios colidentes.

Tampouco se poderia, ainda com fundamento na ponderação entre princípios constitucionais que consubstanciam direitos individuais, enxergar algum fundamento para a punição de um médico que revelasse fatos – que soube por meio do paciente/confitente ou mesmo depreendeu a partir de exames que nele realizou – propícios a embasar a obtenção do direito à liberdade de terceiro injustamente encarcerado.

Ainda que divulgue segredo que lhe foi revelado em razão da relação médico-paciente, o peso do direito posto em risco pela não revelação (direito à liberdade, cf. 5º, ‘caput’, da CF/88) suplantaria em muito o peso daquele outro sacrificado (direito à intimidade). Não há como negar que a superação da norma sacrificada foi apta a obter a finalidade desejada (fim subjacente da norma) pela outra norma (daquela que protege o direito à liberdade).

Inquestionavelmente a dignidade humana é fundamento e conteúdo de direitos individuais tanto na defesa contra a intervenção estatal, como ainda limitando a intervenção de terceiros. Entretanto, pode suceder de um direito individual que se apresenta como emanação direta do princípio da dignidade da pessoa humana (como o direito à intimidade) se contrapor a outro direito individual de idêntica nuança, acentuando-se a conclusão de que não se pode ter o princípio da dignidade da pessoa humana como absoluto.

À evidência, não se tem a pretensão de compactuar com uma visão restritiva da dignidade da pessoa humana enquanto atributo indissociável a condição humana. O que se aspira é realçar sua função de parâmetro da ponderação quando colidem direitos fundamentais escorados no próprio princípio da dignidade humana e que no caso concreto se defrontam – se insere como elemento na ponderação de maneira a influenciar na atribuição de pesos aos princípios colidentes, conforme a aplicação destes princípios no caso concreto tenhas maior ou menor aptidão para preservar a dignidade humana) –, bem como evidenciar que em certas situações vistos sob a ótica de princípio não estão imunes à ponderação e superação face a outros princípios que destacam direitos individuais fundamentais. Sumariando: o princípio da dignidade humana não é absoluto, nem tampouco os subprincípios ou regras que consubstanciam direitos fundamentais e que decorrem diretamente deste princípio refogem à aplicação da ponderação quando colidem com outros princípios que igualmente destacam direitos individuais.

A propósito Barroso (2010) sobre o tema assim dispõe:

Três observações finais relevantes. A primeira: a dignidade da pessoa humana é parte do conteúdo dos direitos materialmente fundamentais, mas não se confunde com qualquer deles66. Nem tampouco é a dignidade um direito fundamental em si, ponderável com os demais67. Justamente ao contrário, ela é o parâmetro da ponderação, em caso de concorrência entre direitos fundamentais, como se explorará mais adiante. Em segundo lugar, embora seja qualificada como um valor ou princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana não tem caráter absoluto68. É certo que ela deverá ter precedência na maior parte das situações em que entre em rota de colisão com outros princípios69, mas, em determinados contextos, aspectos especialmente relevantes da dignidade poderão ser sacrificados em prol de outros valores individuais ou sociais, como na pena de prisão, na expulsão do estrangeiro ou na proibição de certas formas de expressão. Uma última anotação: a dignidade da pessoa humana, conforme assinalado acima, se aplica tanto nas relações entre indivíduo e Estado como nas relações privadas. (BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010. )

Ao centrar-se no uso que do princípio faz a jurisprudência brasileira fica ainda mais patente seu posicionamento sobre sua relatividade, acentuando sua reiterada utilização para a solução de conflitos entre direitos fundamentais: No constitucionalismo brasileiro, seu principal âmbito de incidência se dará em situações de ambiguidade de linguagem – como parâmetro para escolha de uma solução e não de outra, em função da que melhor realize a dignidade –, de lacuna normativa – para integração da ordem jurídica em situações, por exemplo, como a das uniões homoafetivas –, de colisões de normas constitucionais e direitos fundamentais – como, por exemplo, entre liberdade de expressão, de um lado, e direito ao reconhecimento e à não-discriminação, de outro, e nas de desacordo moral razoável, como elemento argumentativo da construção justa. (IDEM).

Sarlet (2013, p. 5), também faz relevantes contribuições ao assunto, com propriedade alteando a função dúplice da dignidade da pessoa humana, “já que serve de fundamento para a restrição de direitos fundamentais e ao mesmo tempo atua como limite impeditivo de tais restrições”, e advogando, por outro lado, que “eventual relativização da dignidade na sua condição de princípio (de norma jurídica)” não corresponde a uma transigência com a dignidade na sua acepção de “qualidade inerente a todas as pessoas”.

Mas há outras questões agudas ligadas ao tema, que emergem justamente a partir das conclusões sobre não serem assim tão rígidos os contornos do sigilo médico no direito brasileiro.

A primeira questão diz respeito ao modo como as informações do médico deverão ser reveladas e materializadas, quando no caso concreto admitida a prevalência de outro princípio em face daquele que garante (direito à intimidade) o direito do paciente ao sigilo médico – seja a prevalência oriunda de uma regra de exceção adrede prevista na lei ou derivada de um sopesamento entre princípios garantidores de direitos individuais.

Sobre um segundo enfoque, há que se definir se a não prevalência do princípio da intimidade na hipótese concreta pode ocorrer ainda que a divulgação do segredo médico predisponha o paciente-confitente a punição penal.

Para o aclaramento da primeira indagação é preciso explanar que o Código de Ética Médica dedica todo um capítulo para tratar do sigilo médico, vedando a revelação do segredo decorrente da relação médico-paciente, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do paciente (art. nº 73). Já o fazia, nos mesmos moldes, o revogado Código de Ética Médica de 1988 (Resolução CFM 1.246/88). Ambos os códigos previram exceções a ilegitimidade da revelação do segredo, que em síntese se limitam à ‘justa causa’ prevista no Código Penal de 1940, acrescentando apenas a exceção do consentimento do paciente.

Alguns autores, como já anunciado, defendem que a justa causa só se aperfeiçoa quando houver imposição legal ao médico, o que, como demonstrado, não é sustentável juridicamente. Todavia, ainda quando haja imposição legal ao médico, apregoam que se houver requisição judicial para o fornecimento de dados sigilosos do paciente, este fornecimento somente poderá se dar documentalmente, e assim mesmo a perito nomeado pelo Juiz para a realização da perícia pertinente.

Com base no art. nº 4º da Resolução CFM 1.605/2000, o que se pretende é limitar ao perito médico, que também prestou juramento médico, o acesso aos documentos, como forma de preservar o sigilo médico (RODRIGUEZ, 2008). Assim como se tenciona limitar, com base no art. nº 2º, da mesma Resolução, as informações que devam ser comunicadas às autoridades competentes referentes às doenças de notificação compulsória, dos casos previstos no art. 269 do Código Penal, vedando-se a remessa de prontuários e fichas médicas.

Com efeito, entretanto, não é o que ocorre na prática, sendo cotidianamente enviados a juízo os documentos reportados, para inclusive fazer parte integrante do processo dentro do qual foi expedida a ordem de requisição, rotina que não destoa do Direito.

Ainda que a norma infralegal em apreço (e outras que seguem idêntica orientação) não possam ser consideradas em desalinho com as hierarquicamente superiores normas legais que protegem o direito ao sigilo (como o Código Penal), reputando-se assim válidas, a práxis jurídica alcança sustentação no cotejamento entre as regras limitadoras do acesso às informações, formuladas em apreço ao sigilo médico, e aquelas que visam garantir a liberdade do exercício de prova no direito penal, estabelecida como princípio implícito no Código de Processo Penal, consoante ensinam Cintra, Grinover e Dinamarco (2003).

Cabe nesta altura retomar o raciocínio de Humberto Ávila, recopilando o que diz sobre a ponderação de regras:

  • A consequência estabelecida prima facie’ pela regra pode ser superada em face de razões substanciais consideradas pelo aplicador, mediante condizente fundamentação, como superiores àquelas que justificam a própria regra. A superação ocorre com o exame que fundamenta a própria regra (rule´s purpose) para delimitar ou expandir seu alcance, ou mediante o cotejamento com outras regras para encontrar as razões da superação da regra (overruling).

  • As regras têm a função de estabelecer como os princípios morais se aplicam nos casos concretos, eliminando a incerteza e os custos morais daí advindos. A maior ou menor superabilidade de uma regra, portanto, é diretamente proporcional ao valor segurança jurídica, sendo facilmente superável “naqueles casos em que o alargamento ou a restrição da hipótese da regra em razão de sua finalidade forem indiferentes ao valor segurança jurídica.” (ÁVILA, 2015, p. 145).

É desacertado invocar-se a superação de uma das duas regras acima apontadas sob a argumentação de que contrária ao princípio constitucional que subsidia a outra regra.

Ávila sustenta com correção que havendo um conflito entre regra e princípio prevalecerá aquela norma hierarquicamente superior (relação entre norma constitucional e infraconstitucional), seja regra ou princípio, e que se estiverem no mesmo plano hierárquico preponderará a regra, porque “é mais reprovável violar a concretização definitória do valor na regra do que o valor pendente de definição e de complementação de outros, como ocorre no caso dos princípios”.

Entretanto, a despeito da justeza da posição, o confronto apreciado não pode ser resolvido simplesmente com a prevalência de um dos princípios que sustentam cada uma das regras – em nome da hierarquia entre norma constitucional e norma infraconstitucional –, resolvendo-se o embate sob o ângulo da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, até porque, se assim fosse, a regra do sigilo, sustentada pelo direito à intimidade, seria invalidada pelo princípio da liberdade de provas no processo, e a regra do art. nº 155 do Código de Processo Penal restaria invalidada ante ao princípio da intimidade.

Ambas as regras são válidas, constituindo, deveras, concretizações das finalidades de princípios constitucionais, não sendo o caso, consequentemente, de se afastar uma ou outra regra invocando-se a hierarquia entre normas, e, por conseguinte, dirimindo-se o problema apontado com a invalidação de uma das regras.

Decide-se o conflito fazendo-se a ponderação entre as regras, sem ministrar o remédio amargo do “tudo ou nada” preconizado por Dworkin, resolvendo-se a controvérsia com a conclusão de superação de uma das regras no plano concreto, pois ambas podem e devem subsistir no ordenamento jurídico, abstratamente.

Dito em outras palavras, há um conflito concreto entre as diferentes regras, prevalecendo uma delas episodicamente, mas subsistindo ambas para possivelmente solucionar outros conflitos. E entre a regra que veda o livre acesso aos prontuários médico pelos atores do sistema penal (art. 4º da Resolução CFM 1.605/2000) e a regra distinta (art. 155 do Código de Processo Penal) que dispõe sobre o livre exercício do direito de prova, prevalecerá, indubitavelmente, em alguns casos, a segunda regra, pois no juízo de ponderação a ser realizado é possível que se conclua pela absoluta insuficiência para o exercício pleno da prova no processo penal da simples remessa do prontuário ao perito médico como ordena a resolução do CFM.

Em algumas situações será vital o acesso irrestrito, como quando, exemplificativamente, se objetivar a prova da inocência de um acusado, o que só ocorrerá, forçosamente, a partir da análise em juízo da sede das lesões, da extensão delas, do tempo de internação do paciente, ou da descrição do estado geral em que estava o paciente quando ingressou no hospital. Nestas hipóteses, como em outras, será insatisfatória a simples remessa do prontuário, e deverá prevalecer no juízo de ponderação entre as regras aquela concernente à liberdade de acesso à prova, porque no caso concreto mais relevante que se proteja a finalidade subjacente à regra do art. 155 do Código de Processo Penal, garantia às partes do exercício da ampla defesa, do que aquela subjacente à regra do Código de Ética Médica (intimidade do paciente), dado que, inclusive, o acesso ao prontuário será limitado a um número bem restrito de pessoas, não atingindo intensamente o direito do paciente em preservar “o conjunto de informações pessoais submetidas a um regime jurídico de contenção”. (SAMPAIO, 1998).

Novamente no que diz respeito ao modo como deverão ser reveladas e concretizadas as informações prestadas pelo médico quando o direito ao sigilo deva ceder ante outros direitos, cumpre destacar a regra do art. 207 do Código de Processo Penal brasileiro, a prever que “são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

Tourinho Filho (2004) e outros como Bonfim (2002), Capez (2002) e Noronha (2002), Lima (2006), Nucci (2011), Oliveira (2009) ao discorrerem sobre a regra exaltam a intenção da preservação do sigilo profissional como finalidade subjacente da norma (regra do art. 207 do CPP), e não se atém a possibilidade de seu afastamento em situações concretas. Tourinho Filho até realça a existência de normas similares em diversos ordenamentos jurídicos, destacando o direito italiano, espanhol e argentino, embora Tonini (2002) em comentário ao art. 200 do Código de Processo Penal italiano escreva que

Algumas testemunhas com determinadas qualidades específicas tem a “faculdade” (do ponto de vista do procedimento penal) de não responder a determinadas perguntas quando a resposta implicar violação do dever de segredo profissional. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 3º volume. 26. ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 312-314.).

Na verdade, o jurista italiano refere-se à “faculdade” da testemunha, termo não utilizado pela regra, quando a acepção correta seria “dever”, tanto assim que menciona a existência da prática de crime por aquele que tem o dever de sigilo, e sem se enquadrar numa das exceções da lei, o revela, inclusive em juízo. De qualquer modo, e mais importante, discorre sobre exceções à regra do art. 200 do CPP italiano – inclusive referindo-se aos médicos que trabalham para instituições públicas, donde se conclui que o sistema é bem diverso do sistema brasileiro, que ‘prima facie’ parece impedir o testemunho em qualquer caso –, exceções que podem servir de parâmetro para o afastamento da regra do art. 207 do CPP brasileiro em alguns casos.

Em sentido discrepante à doutrina em geral, e fazendo-se uso das lições de Ávila, constata-se que a regra impeditiva do testemunho deve ser afastada em alguns casos concretos, alcançando-se a superação em face da própria fundamentação da norma (rule´s purpose), ou seja, a conseqüência estabelecida “prima facie” na norma pode deixar de ser aplicada “em face de razões substanciais consideradas pelo aplicador, mediante condizente fundamentação, como superiores àquelas que justificam a própria regra” (ÁVILA, 2015).

Se o testemunho do médico, ainda que envolva segredo revelado por meio da relação médico-paciente, for imprescindível para que o processo penal chegue a bom termo num caso de extrema gravidade, como um homicídio, permitindo que se tutele o direito a liberdade do acusado, não há como não afastar a regra do art. 207 do CPP. A Idêntica solução se chegará, tome-se de novo a título de exemplo, quando o testemunho de um psiquiatra – a quem um paciente desvelou um segredo que descortina a predisposição de terceiro à pedofilia – tenha o condão de contribuir para assegurar a integridade física de criança cuja guarda ou pátrio poder seja detido pelo terceiro, que responde em juízo a processo penal pela prática de crime contra a liberdade sexual – contra a própria criança ou outra vítima, pouco importa.

Nesses e noutros casos, é possível não aplicar-se a regra porque sua superação no caso concreto (com a permissão para o testemunho do médico sobre fatos que conhece em razão de sua relação profissional com o paciente) não implica na obstaculização da finalidade implícita na norma (zelar pela confiança que as pessoas depositam em determinadas profissões).

A seriedade e gravidade da situação posta ao médico implicariam, nessas situações, em uma ponderação cujo resultado, em alinho com os preceitos morais que norteiam a atividade médica na busca incessante pela saúde e bem-estar físico e mental do ser humano, obrigatoriamente importaria na necessidade da prestação do testemunho.

A excepcionalidade das situações postas, e das conseqüências graves resultantes do não testemunho, obstaria qualquer possível diminuição do nível geral de confiança das pessoas na atividade médica com a revelação do segredo. Ao contrário, poderia contribuir para o incremento de uma visão positiva dos profissionais e da atividade médica, pondo à mostra que não estão presos a meros dogmas, e sim substancialmente comprometidos com uma visão verdadeiramente humanista, sem prejuízo da preservação do sigilo na generalidade dos casos, vale dizer, na quase totalidade dos casos.

Aliás, esta possibilidade de preservação da regra fora dos casos excepcionais de superação, em função da pequena “possibilidade de reaparecimento freqüente da situação similar” é o que Ávila aduz ser um dos requisitos para a superação da regra, o requisito do “valor formal subjacente às regras (valor formal da segurança jurídica)”. (ÁVILA, 2015, p. 144-145)

O testemunho deverá se limitar a situações excepcionais, quando configurar o único meio disponível para evitar-se o perecimento de direitos individuais tão ou mais caros que a intimidade, na prática quase sempre igualmente escorados no princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, certamente não será freqüente o reaparecimento de situações similares, resguardando-se o valor formal da segurança jurídica.

Quanto à hipótese em que a divulgação do segredo médico predisponha o paciente-confitente a punição penal, o amparo à vedação da revelação da confidência encontra suporte na regra da alínea ‘c’, do parágrafo único do art. 73 do Código de Ética Médica. Quando interpretada dentro do sistema do dever médico ao sigilo profissional, a regra leva à conclusão de que em nenhuma hipótese é permitido ao médico dispor sobre segredo que possa expor seu paciente a processo penal, inexistindo justa causa para esta espécie de conduta.

O cenário é diverso dos outros antes delineados, embora a deliberação deva ser idêntica. Diverso porque antes se tratou de exceções ao dever de sigilo que findaram em exposição de intimidade do paciente, eventualmente causando-lhe danos unicamente decorrentes da exposição em si, sem outros gravames como aqueles possivelmente surgidos do testemunho que lhe acarrete uma ação penal ou lhe piore a situação processual na ação penal, potencialmente gerando futura restrição à liberdade. A deliberação é idêntica porque a regra deixará de ser aplicada se sua superação não envolver o impedimento da eficácia subjacente da norma (material), bem como se não constituir em obstáculo à segurança jurídica (valor formal subjacente da norma).

Dessa forma, numa situação hipotética em que um indivíduo esteja sendo investigado por causar a morte de um de seus filhos, um recém-nascido que alegadamente sofreu uma queda, não se pode afastar o testemunho do psiquiatra que se apresenta a polícia narrando que tem informações relevantes a respeito de seu paciente, o investigado, que podem estar conectadas ao crime.

As tais informações, que podem ser uma confissão feita pelo paciente ao médico sobre uma compulsão por violência, sobre um sentimento de vingança que acalenta contra a mulher e mão de seus filhos ou outra coisa do gênero, destapam um real perigo à vida e integridade física dos outros filhos da prole, panorama adequado ao afastamento da regra, em face da necessidade da proteção ao direito à vida.

O valor material da norma (zelar pela confiança que as pessoas depositam em determinadas profissões) continua preservado com o testemunho do médico, ante a confiança que inspira uma conduta condizente com a obrigação de preservação da vida – princípio fundamental da ética médica inscrito no Capítulo I, “Princípios Fundamentais”, II do Código de Ética Médica – e com os ditames morais que devem regular a atividade médica. O valor formal da norma tampouco será tisnado, ficando a salvo o elemento segurança jurídica em face da excepcionalidade da situação, dificilmente repetível.

Em todas as situações apontadas é possível identificar a relatividade do sigilo médico, bem como a preservação no ordenamento jurídico (plano abstrato) da norma que garante este sigilo, quer se trate de um princípio (ao final não prevalente no caso concreto em razão do peso maior atribuído a outro princípio), quer se trate de uma regra – uma vez que ocorra a superação mediante o exame que fundamenta a própria regra (rule´s purpose), ou com o auxílio do cotejamento com outras regras para encontrar as razões da superação (overruling).

Mesmo que o sigilo constitua instrumento para preservação da intimidade, e este direito guarde estrita consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, quando a norma que lhe estabelece diretamente como um fim (no caso do princípio) ou que fixa um comportamento específico para que seja alcançado ou preservado (regra), colide com outras normas, deverá ser afastada, seja um princípio ou regra aquele que garante um direito contraposto e que no caso concreto apresente um maior peso. Há casos até em que a norma do sigilo (aqui especificamente qualquer das regras atinentes à preservação do sigilo médico) não será aplicada independentemente de cotejamento com outras normas, desde que ressaia a necessidade de sua superação no caso concreto, mantidos os valores material e formal subjacentes à norma.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sigilo médico, espécie de sigilo profissional, é uma garantia ao direito fundamental da intimidade do paciente, protegido, portanto na Constituição Federa.

  1. O direito à intimidade é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, norma fundamental do Estado brasileiro, nos termos do art. 1º, III da Constituição Federal.

  2. O direito à intimidade não é absoluto, não prevalecendo eventualmente, em maior ou menor extensão, quando colide numa situação concreta com outro direito fundamental.

  3. A prevalência ou não do princípio que garante a intimidade, e consequentemente o sigilo médico, é dependente de um juízo de ponderação, em que o intérprete/aplicador pesará razões e fins que sustentam os princípios em confronto.

  4. Em algumas circunstâncias a proteção ao direito do sigilo médico, ou a proteção ao direito que a ele se contrapõe no caso concreto, dependerá não de um juízo de ponderação entre princípios, mas de uma ponderação entre regras, mantendo-se a validade das regras confrontadas.

  5. As razões da superação das regras que asseguram o direito ao sigilo, como sói acontecer com a superação das regras em geral, pode se dar com o exame que fundamenta a própria regra (rule´s purpose) – para delimitar ou expandir seu alcance –, ou mediante o cotejamento com outras regras (overruling).

  6. O método proposto por Humberto Ávila compreende não só a solução para a colisão entre princípios, mas também para a superação de regras, e tem extenso alcance prático, permitindo respostas para a resolução de conflitos que não poderiam ser alcançadas apenas pela aplicação da teoria dos princípios.

  7. Especificamente no campo do sigilo médico, a teoria desenvolvida por Ávila autoriza o afastamento de regras que procuram superdimensionar indevidamente o alcance do direito/dever, oportunizando decisões mais justas e condizentes com a realidade.

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